quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Fragmentos de um discurso amoroso.



1
Que é que eu penso do amor? - Em suma, não penso em nada. Bem que eu gostaria de saber oque é, mas estando do lado de dentro, eu o vejo em existência, não em essência. O que quero conhecer (o amor) é exatamente a matéria que uso para falar (o discurso amoroso). A reflexão me é certamente permitida, mas como esta reflexão é logo incluida na sucessão de imagens, ela não se torna nunca reflexividade: excluído da lógica (que supõe linguagens exteriores umas as outras), não posso pretender pensar bem. Do mesmo modo, mesmo que eu discorresse sobre o amor durante um ano, só poderia esperar pegar o conceito "pelo rabo": por flashes, fórmulas, surpresas de expressao, dispersos pelo grande escoamento do imaginário; estou no mau lugar do amor, que é seu lugar iluminado: "O lugar mais sombrio, diz um provérbio chines, é sempre embaixo da lâmpada".




2
Adoravel é o vestigio futil de um cansaço, que é o cansaço da linguagem. De palavra em palavra me esforço para dizer de outro modo o mesmo da minha liguagem, impropriamente o proprio de meu desejo: viagem ao termino do qual minha ultima filosofia so pode ser reconhecer - e praticar - a tautologia. É adoravel oque é adoravel. Ou ainda. Adoro voce porque voce é adoravel, te amo porque te amo. Assim, o que fecha a linguagem amorosa é aquilo mesmo que a instituiu: a fascinação. Pois descrever a fascinação não pode nunca, no fim das contas, ultrapassar este enunciado: "estou fasinado". Ao atingir a estremidade da linguagem, la onde ela não pode senão repetir sua ultima palavra, como um disco arranhado, me embriago de sua afirmação: a tautologia não é esse estado inusitado, onde se acham misturados todos os valores, o fim glorioso da operação logica, o obsceno da tolice e a explosãodo sim nietzschiano?


3
"Estou apaixonado? - Sim, pois espero." O outro nunca espera . Às vezes quero representar auqele que não espera; tento me ocupar em outro lugar, chegar atrasado; mas este jogo perco sempre: oque quer que eu faça, acabo sempre sem ter o que fazer, pontual, ate mesmo adiantado. a identidade fatal do enamorado não é outra senão: sou aquele que espera.




4
Dizem-e: esse genero de amor não é viavel. Mas como avaliar a viabilidade? Porque que o que é viavel é um bem? porque durar é melhor que inflamar?


5
Como ciumento sofro quatro vezes: poruqe sou  ciumento, porque me reprovo de se-lo, porque temo que meu ciume machuque o outro, porque me deixo dominar por uma banalidade: sofro por ser excluido, por ser agressivo, por ser louco e por ser comum.




6
Sem querer, o dedo de Werther toca o dedo de Charlotte, seus pés, sob a mesa, se encontram. Werther poderia se abstrair do sentido desses acasos; poderia se concentrar corporalmente sobre essas fracas zonas de contato e gozar esse pedaço de dedo ou de pé inerte, de um modo fetichista, sem se preocupar com a resposta (como deus - é sua etimologia - o fetichenão responde). Mas precisamente: Werther é perverso, ele esta apaixonado: cria sentido, sempre, em toda parte, de coisa alguma, e é o sentido que o faz ficar arrepiado: ele esta no braseiro do sentido. Todo contato, para o enamorado, coloca a questão da resposta: pede-se à pele que responda.
(Pressão de mãos - imenso dossiê romantesco - , gesto delicado no interior da palma, joelho que não se afasta, braço estendido, como por acaso, no encosto so sofa e sobre o qual a cabeça do outro vem pouco a pouco repousar, é a região paradisiaca dos signos sutis e clandestinos: como uma festa, não dos sentidos, mas do sentido.)



* Esta obra-prima de Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, é uma resposta do autor aos seus contemporâneos, que haviam marginalizado completamente a linguagem do amor de sua esfera do pensamento, das suas concepções artísticas, culturais ou científicas. Ela era reputada como algo pertencente a um passado excessivamente sentimental, sendo, portanto, segregada por aqueles que se consideravam modernos. Barthes devolve ao discurso do amor sua dignidade, seu brilho inigualável, ao resgatar a noção dos antigos sobre a alma deste sentimento. Assim, ele retoma os conceitos filosóficos, de Platão a Nietzsche, navega pela Psicanálise de Freud e de seus adeptos, empresta as noções essenciais do Zen e de outras vertentes místicas, assentando-se sobre o alicerce literário, principalmente na releitura de Werther, de Goethe.

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